F. como Feltis
Melhor fora que o não fizéssemos, pois, meia hora depois do dito tratamento Feltis caía na mais profunda coma vindo a morrer oito horas depois no meio de maiores padecimentos e aflições que se pode imaginar, mas rodeado de todos quantos a amaram em vida até mesmo da Crisaltina, a nossa gatinha banhú, na altura ainda tchota, a qual nos deu grande lição de dedicação e amor fraternal não se tendo, ao longo de todo esse calvário, despregado um minuto que fosse do leito da morte, como adiante direi. Feltis, arrasada
As circunstâncias que ditaram a morte de Feltis são de todo obscuras e nunca foram esclarecidas inteiramente. Ao que parece, num sábado, sem nossa autorização, Feltis, contra o seu habitual, resolveu acompanhar seus colegas numa enorme coboiada. Domingo nem sinal de Feltis. Na segunda-feira nada. Meu pai foi o primeiro a dar o alerta: «há dias que não vejo o gato». A partir daí, o que tinha pairado no ar como mera suspeição, tornou-se certeza evidente: alguma coisa estranha tinha sucedido à Feltis, pois, gata velhaca sim, até manhenta se pode dizer, mas muito pontual, cumpridora de horário mesmo, sobretudo das horas de refeição. Quando o almoço se fazia anunciar na cozinha, Feltis surgia disparado como uma raquete, escoltando com a cauda entre as pernas da empregada ao som de estridentes miaus-miaus as fumegantes terrinas, tigelas e sopeiras que ela transportava para a sala de jantar. Camões exclamaria, se a visse: «com inimigos desses o menor perigo é guerra». Patrícia não ficava nada a dever ao grande vate lusitano - tratava a felina criatura a chutos e pontapés que felizmente raras vezes acertavam o alvo. M. mais contemporizada, mandava arrepiar caminho e servir em primeira mão a pobre criatura, mas não sem dispensar um pequeno remoque: «quem qui ta odja ta pensa me ca ta dado comida tudo dia». Quem não achava piada alguma a esses exageros felinos era minha avo quando do interior para tratamento medico: «ela está sabe. Mais que alguém propri. Vai brincar lá na quintal».
II
Efectivamente algo tinha acontecido à Feltis. Uma noite, que era véspera do dia da Gloriosíssima Virgem Nossa Senhora da Conceição Madre de Deus, estando eu e S. a dialogar na nossa varanda ao som estridente da música de grilos, senti qualquer coisa a roçar-me os pés. Curvei-me e para meu espanto vi Feltis. Quis Nosso Senhor que estivesse inteira como houvera partido uma semana antes. Entrei para dar as boas novas. Todos se dirigiram à varanda, onde a senhora dona Feltis foi recebida com muito alvoroço e contentamento. Ela todavia impávida não se tinha movimentado um milímetro na postura com que tinha entrado. No meio desta euforia andávamos nós, quando M. erguendo Feltis com a ponta dos dedos quebrou o silêncio proclamando: «Feltis tem as costas quebradas».
Ao nosso bom ânimo e alegria seguiu primeiramente resignação e depois revolta. Quem da vizinhança tivera a coragem de aplicar semelhante paulada na costa dum gato manso que não mexia com ninguém e até de ratos tinha medo.
Movido pela pouca dita e sorte da Feltis disse para comigo que também os animais tinham direitos e que essa apagada e vil criatura devia ser processada, julgada, metida na cadeia como era uso e costume na Europa e nos USA onde inclusive os animais tinham mais direitos de que certas minorias raciais.
Enfim, lá carregamos a nossa Feltis. Crentes nas misericórdias que Deus connosco usava, tínhamos esperanças na sua breve recuperação de tão miserável e lastimoso estado em que ela agora se encontrava.
Primeiramente foi posta na sala de jantar e preparado um manjar com mantimentos e outras coisas que esforçassem seu debilitado corpo por tão traiçoeira e mesquinha pancada. Talvez querendo poupar-nos a contemplação do seu precário estado, apoiando-se, com grandes trabalhos, nas suas patinhas dianteiras, começou Feltis a arrastar-se em direcção ao quintal onde tinha nascido e criado, indo encafuar-se dentro dum balde do qual durante três dias não saiu nem para comer acontecendo a dita manobra sob constante vigilância da gatinha banhú Crisaltina, como já disse e toquei atrás.
Dizem que os animais ditos irracionais vivem na sua corporalidade e que muitas vezes é preferível abatê-los a ter que os deixar viver com certas privações corporais.
Com efeito, Feltis que antes atravessava o quintal como um raio demorava agora horas para se arrastar da sua toca e ir beber um leitinho na sua tigela e regressar. Primeiro era um sondar medonho e desconfiado do terreno, acompanhado de um movimentozinho lento e mole de alguns centímetros engostadinho à parede, intermediado por uma pausa de meia hora. Tudo isto acontecia sob vigilância e protecção da irmãzinha que não arredava pé e parecia mesmo ter-se tornado em curto espaço de tempo numa gatinha adulta sem ter mister as cabriolices e disparates de gatos-crianças.
Assim ia correndo as rodas da fortuna, a Feltis já arrastando o corpo com maior ligeireza e segurança (M. ia rogando a Nossa Senhora, em cujo favor confiava estar o remédio e salvação da gata) e nós esperançando remédio para sua má fortuna e pouca dita, até que um dia, que era na entrada de Março, foi Nosso Senhor servido revelar-nos da irreversibilidade do estado da Feltis.
Foi no décimo terceiro dia do infeliz e lastimoso regresso da Feltis, quando M. surpreendida por um inesperado e espalhafatoso ataque de gatos à nossa cozinha, empunhando um varapau praguejou: «saltem fora. Pensam que estou a cozinhar para vocês?». Como, coitada, só tinha ficado a Feltis, M. disse ainda mais chateada: «Sai tu também, costa quebrada».
III
Na vida da Festis tudo aconteceu de forma rápida e pouco acostumada e tenho muitas vezes pensado que se Kafka tivesse escrito esta história Feltis provavelmente jamais teria regressado. O autor deste relato, usando de toda a verdade que se lhe assiste, permite-o, mas o seu regresso não é menos cruel e infausto.
De facto, mal Feltis recompôs-se do acidente que vimos relatando e passou-se a chamar Costa-Quebrada sobreveio-nos mais uma grande desventura a qual foi a causa da perdição da felina criatura. E porque escrever com todos os pormenores o lamentável fim que sobreveio a Feltis, a mim muita mágoa e ao leitor mais fastio que contentamento causaria, não tratarei mais que com a maior brevidade possível o estritamente necessário para a verdadeira continuação desta pouca costumada história.
Indo nós na passagem onde quebrei o fio a este meu trabalho, havendo Feltis curado da pancada que tenho dito e contado, foi-lhe servido meter-se em grandes voluntarezas e cabrices das quais resultaram uma prenhes indesejada e começou a cumprir-se os prognósticos e juízo duma vizinha estrangeira que tinha ido dar fé quando ouviu novidade do regresso da Feltis.
Carregando fortemente nos rrs, por não dominar ainda nem o português ou o crioulo, vaticinou com sua boca fede: «gata vai ficar com costa torta. Vocês toma muito cuidado para não emprenhar porque fica com filhas dentro do estômago».
Tendo chegado a altura da parição, e já olvidados daquela infame estrangeira, preparámos um caixotinho de papelão para Feltis ter suas crias. Mas ela não pariu. Nem podia parir, como mais a frente se verá.
O médico pôs no bilhete de óbito congestão pulmonar. Mas ele é que matou o nosso gato. M. praguejou depois de ler o certificado: «congestão pulmonar é cadeira da sua mãe». Eu para consolar: «Aquela estrangeira já tinha dito». «Aquela boca fede» disse M. colhendo as rédeas ao assunto.
IV
Poderá eventualmente interessar ao leitor saber que desde o fim do capítulo anterior decorreram 15 meses sem que o autor mexesse nesta história. Até que certa tarde, estando numa paragem de autocarros no Sucupira, deu as boas tardes a uma jornalista da televisão e enquanto esperávamos o autocarro que nunca mais vinha a nossa conversa descambou em canina e felina bicharada.
Ela contou-me que esse mesmo veterinário, a quem no início do primeiro capitulo, como referi, pedimos ajuda e favor, tinha-lhe matado o seu cãozinho de estimação, de nome Lili, como, muitos anos depois, na Casinha Velha, onde fui jantar com o Nuno Rebocho, o Apolinário das Neves e Ricardo Bardalo, me havia de revelar, quando lhe disse que tinha posto seu cãozinho de estimação num conto que escrevi imediatamente depois do nosso encontro em Sucupira. Olha filhota, este aqui que é sr. António, que pôs o teu cãozinho na história, diz boa noite. Por nada deste mundo a filha quis cumprimentar-me, porque teimava que não tinha nem nunca tivera cão de nome Lili, “inda mais com manchinhas no peito”, disse afastando-se de mim bastante agastada. Mas filha é verdade; tiveste um cão chamado Lili, só que já não te lembras porque eras muito pequena na altura, interveio a mãe.
Aqui poderá ser mais útil ao leitor que eu abra um parêntese e esclareça alguns pontos para o bom entendimento do que venho relatando. A jornalista da televisão desta história é a dona Alicia Brito, actual assessora da Ministra das Finanças; a Casinha Velha, para usar de uma vez por todas palavras fatais é a instituição da noite. “Barriga de atum, tchitcharro e bica, sempre grelhadas, com batata cozida e saladinha, ementa a mesma sempre” - nestes termos e nesta ordem de pescado registou um jornalista português no seu roteiro de viajem Quebra - Canela (aventuras e desventuras de um portuga nas ilhas do Cabo Verde) as maravilhosas iguarias da cozinha do velho Alves. O dito portuga confidenciou-me certa vez que se podia até dizer, sem faltar muito à verdade, que ele vinha de Portugal, quase e exclusivamente (de metod, diria Bana) para se deliciar e empanturrar com as quadradas barrigas de atum que o Alves corta generosamente, escoltadas inevitavelmente pelas saborosas batatas cozidas que são um hino de louvor aos deuses da culinária. E quem é, já agora, este simpático velho Alves que inadvertidamente entrou por esta história adentro sem pedir licença? Se o desocupado e distraído leitor me tivesse feito o favor de ler as mil e umas aventuras de Nuno Rebocho por vales, achadas matos e ribeiras de Cabo Verde, não estaria agora a importunar-me. Mas por minha boa sorte, ou mal dos meus pecados, vai um retrato, extraído da obra do referido autor, que impressionado com o destino de mais um europeu que troca o seu continente pela África, lhe dedica uma crónica inteira no seu livro. O velho Alves não é Quincas Borba, o inventor de uma filosofia, sintetizada na máxima Ao vencedor a batatas. Mas tem uma filosofia de vida: descansa de dia, trabalha à noite. “Enriquecer para quê? Trabalho o que é necessário para viver e não ter chatices”.
Já chega de apresentações e regressemos a correr à felina história, onde tínhamo-la deixado, que era no ponto onde Alicia Brito, frente à paragem de autocarros no Sucupira deu início à sua história, nestes termos: “Fui consultar o meu cão. Aquele médico receitou-me 50 comprimidos e disse: assim que chegar a casa dá o primeiro comprimido numa colherzinha de chá. Se continuar com os mesmos sintomas ou não melhorar a senhora dá ao cão mais uma. Àh sr. António, ao outro dia fui à sua clínica e ele teve ainda o descaramento de perguntar-me como vai o nosso cão. Também respondi-lhe: «você toma os seus 49 comprimidos e receita-os ao seu gato para ele morrer também». Tinha sido como se diz agora tiro e queda. Ela contou-me que chegado à casa foi buscar imediatamente a colher de chá, abriu a boca ao cão, enfiou o remédio nas suas goelas e ficou correndo mão na sua cabeça enquanto dizia: cãozinho vai ficar melhorzinha, cãozinho vai ficar boa já. Mas então o cão caiu na mais profunda prostração vindo a morrer ainda antes de desinfectar a colher na qual dei ao cão aquele maldito remédio. «E você sabe, foi tudo por causa dumas manchinhas que saíram a Lili na peito», disse ela mais em modo de tchocota do que a sério.
V
Só no dia dos meus últimos passos sobre a terra apagar-se-me-á da memória a última noite em que vi a Feltis. Eu ia sair de casa apressadamente, quando vi na varanda Feltis e parei. Ela sentada nas patas traseiras, a cabeça erguida em direcção ao céu, mirava a imensidão do universo. Sentei-me ao pé dela, fi-la festinhas nas costas e olhei também para o império celeste em silêncio. Pensei: para onde estará a olhar este gato? Em que estará a pensar? Quererá encher-se com todas as imagens e rumores da Terra para quando estiver morta? Que triste destino ter este animal nascido gato! Eu também poderia ter nascido gato, barata, burro ou o que quer que fosse sem ter podido modificar a minha dita. Porém brevemente ela deixará de ser gato, de ser o que quer que seja, de ser simplesmente, quando a morte a libertar do triste costume de ser animal e do peso do universo.
Com efeito, no dia seguinte, o estado da Feltis tinha piorado de tal maneira que ela desistiu do ofício de parir indo procurar alívio para seu debilitado corpo numas terras molhadas do nosso pequeno jardim, onde ficou até ser levada de urgência para consultório e recebido o dito tratamento do qual resultaria a intempestiva e lastimosa morte como ficou dito e escrito no começo desta história.
Muitas vezes, à hora em que das montanhas descem as primeiras sombras e o céu enche-se de estrelas, tenho-me sentado diante da porta a olhar para Feltis como se ela estivesse ali comigo a contemplar a vastidão infinita do universo. Então invariavelmente dou comigo a pensar na trágica pequenez humana perante um universo que se rege por leis mais perenes do que as nossas e que nada tem de antropomórfico, como no nosso egocentrismo somos propícios a pensar. Mas então, questiono-me, qual é a realidade de tudo isto? Afinal onde é que as coisas continuam e como continuam se é que continuam? Será o universo finito ou encontra-se em expansão eterna? E como eram as condições na altura do Big Bang, a super explosão inicial que deu origem a um universo em expansão, hipótese em que se baseia quase toda a cosmologia moderna. E como era isso milésimos de segundos antes da explosão, antes do nada não pode haver nada. Existiria um minúsculo universo, despido de toda a matéria, a qual, de súbito, se criou a partir do nada. «Isso e apenas contemporizar. Se quisermos prosseguir a questão corajosamente, teremos, evidentemente, de perguntar de onde veio Deus. E, se concluirmos que isso não tem resposta, porque não saltar um passo e concluir que a origem do universo é uma pergunta sem resposta? Ou, se dissermos que Deus existiu sempre, porque não saltar um passo e concluir que o universo existiu sempre?» Estas reflexões, como o benévolo leitor terá já constatado, não são minhas. No que eu piamente acredito é que deverá existir qualquer coisa como uma memória universal onde está armazenado tudo o que existe, tudo o que existiu e tudo o que virá existir.
Dela fazem parte tanto a Retirada dos Cem Mil, a guerra de Tróia como as feltinas façanhas que já em vida da extinta andavam nas bocas do mundo, levando a palmo em matéria de grandeza e temeridade as maiores aventuras cometidas em toda a redondeza da terra, as acima referidas incluídas.
Sei que muitos preferem o célebre e na altura muito relatado Carnaval que ela mais um grupo de gatos foram passar na Achadinha que saldaram em doze mortos, trinta prisões, três patas e quatro pernas partidas, tendo sido Feltis atingida em cheio na pata direita por um tiro de arcabuz quando encima dum telhado dava cobertura à retirada duma colega e teve de andar um mês de muleta.
Para mim, a história do telefone, quer no que representa em termos de actualidade como de profunda psicologia é aquela que mais me alegra o ânimo, não obstante existirem opiniões divergentes quanto a veracidade deste relato. Seja como for, hoje, 3 de Janeiro de 1997, vislumbro-a assim: um dia M. estava a telefonar.
Conta a história que Feltis, já farta daquele conversar sem fim, dirigiu-se felinamente à sala de jantar atravessando o corredor e num rápido e brusco ataque arrebatou à M. o auscultador do ouvido pondo desta arte termo a uma conversa que já se arrastava por mais de uma hora. Felizmente para o gato, infelizmente para M., Feltis nasceu dotado de umas garras compridas e afiadas. Fora dos propósitos e intenções da Feltis, foram essas garras espetar na orelha da M. causando-lhe graves problemas e não menores dissabores sobretudo na hora de deitar. Para debilitar essa chatice ela durante semanas a fio só deitava do lado do ouvido pronto. Muito tempo depois do inaudito incidente M. ainda só telefonava a portas fechadas e só depois de munido de um duro varapau ter vasculhado todos os cantos da sala. Vale.