sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Inéditos de NHÔ GAMBUZINO


F. como Feltis



José Maria dos Santos Sete Quinze, para muitos simplesmente Feltis, nasceu na Praia, Anno Domini 1912 e morreu na mesma cidade a 12 de Maio de 1993 de uma congestão pulmonar. Já no fim, só para os vizinhos não nos censurarem que deixámos a coitada morrer à míngua e nós também para tranquilizarmos a nossa alma que um dia haveremos de dar a Deus Nosso Senhor, só nos restou experimentar um veterinário a quem pedimos ajuda e favor.
Melhor fora que o não fizéssemos, pois, meia hora depois do dito tratamento Feltis caía na mais profunda coma vindo a morrer oito horas depois no meio de maiores padecimentos e aflições que se pode imaginar, mas rodeado de todos quantos a amaram em vida até mesmo da Crisaltina, a nossa gatinha banhú, na altura ainda tchota, a qual nos deu grande lição de dedicação e amor fraternal não se tendo, ao longo de todo esse calvário, despregado um minuto que fosse do leito da morte, como adiante direi. Feltis, arrasada
As circunstâncias que ditaram a morte de Feltis são de todo obscuras e nunca foram esclarecidas inteiramente. Ao que parece, num sábado, sem nossa autorização, Feltis, contra o seu habitual, resolveu acompanhar seus colegas numa enorme coboiada. Domingo nem sinal de Feltis. Na segunda-feira nada. Meu pai foi o primeiro a dar o alerta: «há dias que não vejo o gato». A partir daí, o que tinha pairado no ar como mera suspeição, tornou-se certeza evidente: alguma coisa estranha tinha sucedido à Feltis, pois, gata velhaca sim, até manhenta se pode dizer, mas muito pontual, cumpridora de horário mesmo, sobretudo das horas de refeição. Quando o almoço se fazia anunciar na cozinha, Feltis surgia disparado como uma raquete, escoltando com a cauda entre as pernas da empregada ao som de estridentes miaus-miaus as fumegantes terrinas, tigelas e sopeiras que ela transportava para a sala de jantar. Camões exclamaria, se a visse: «com inimigos desses o menor perigo é guerra». Patrícia não ficava nada a dever ao grande vate lusitano - tratava a felina criatura a chutos e pontapés que felizmente raras vezes acertavam o alvo. M. mais contemporizada, mandava arrepiar caminho e servir em primeira mão a pobre criatura, mas não sem dispensar um pequeno remoque: «quem qui ta odja ta pensa me ca ta dado comida tudo dia». Quem não achava piada alguma a esses exageros felinos era minha avo quando do interior para tratamento medico: «ela está sabe. Mais que alguém propri. Vai brincar lá na quintal».

II

Efectivamente algo tinha acontecido à Feltis. Uma noite, que era véspera do dia da Gloriosíssima Virgem Nossa Senhora da Conceição Madre de Deus, estando eu e S. a dialogar na nossa varanda ao som estridente da música de grilos, senti qualquer coisa a roçar-me os pés. Curvei-me e para meu espanto vi Feltis. Quis Nosso Senhor que estivesse inteira como houvera partido uma semana antes. Entrei para dar as boas novas. Todos se dirigiram à varanda, onde a senhora dona Feltis foi recebida com muito alvoroço e contentamento. Ela todavia impávida não se tinha movimentado um milímetro na postura com que tinha entrado. No meio desta euforia andávamos nós, quando M. erguendo Feltis com a ponta dos dedos quebrou o silêncio proclamando: «Feltis tem as costas quebradas».
Ao nosso bom ânimo e alegria seguiu primeiramente resignação e depois revolta. Quem da vizinhança tivera a coragem de aplicar semelhante paulada na costa dum gato manso que não mexia com ninguém e até de ratos tinha medo.
Movido pela pouca dita e sorte da Feltis disse para comigo que também os animais tinham direitos e que essa apagada e vil criatura devia ser processada, julgada, metida na cadeia como era uso e costume na Europa e nos USA onde inclusive os animais tinham mais direitos de que certas minorias raciais.
Enfim, lá carregamos a nossa Feltis. Crentes nas misericórdias que Deus connosco usava, tínhamos esperanças na sua breve recuperação de tão miserável e lastimoso estado em que ela agora se encontrava.
Primeiramente foi posta na sala de jantar e preparado um manjar com mantimentos e outras coisas que esforçassem seu debilitado corpo por tão traiçoeira e mesquinha pancada. Talvez querendo poupar-nos a contemplação do seu precário estado, apoiando-se, com grandes trabalhos, nas suas patinhas dianteiras, começou Feltis a arrastar-se em direcção ao quintal onde tinha nascido e criado, indo encafuar-se dentro dum balde do qual durante três dias não saiu nem para comer acontecendo a dita manobra sob constante vigilância da gatinha banhú Crisaltina, como já disse e toquei atrás.
Dizem que os animais ditos irracionais vivem na sua corporalidade e que muitas vezes é preferível abatê-los a ter que os deixar viver com certas privações corporais.
Com efeito, Feltis que antes atravessava o quintal como um raio demorava agora horas para se arrastar da sua toca e ir beber um leitinho na sua tigela e regressar. Primeiro era um sondar medonho e desconfiado do terreno, acompanhado de um movimentozinho lento e mole de alguns centímetros engostadinho à parede, intermediado por uma pausa de meia hora. Tudo isto acontecia sob vigilância e protecção da irmãzinha que não arredava pé e parecia mesmo ter-se tornado em curto espaço de tempo numa gatinha adulta sem ter mister as cabriolices e disparates de gatos-crianças.
Assim ia correndo as rodas da fortuna, a Feltis já arrastando o corpo com maior ligeireza e segurança (M. ia rogando a Nossa Senhora, em cujo favor confiava estar o remédio e salvação da gata) e nós esperançando remédio para sua má fortuna e pouca dita, até que um dia, que era na entrada de Março, foi Nosso Senhor servido revelar-nos da irreversibilidade do estado da Feltis.
Foi no décimo terceiro dia do infeliz e lastimoso regresso da Feltis, quando M. surpreendida por um inesperado e espalhafatoso ataque de gatos à nossa cozinha, empunhando um varapau praguejou: «saltem fora. Pensam que estou a cozinhar para vocês?». Como, coitada, só tinha ficado a Feltis, M. disse ainda mais chateada: «Sai tu também, costa quebrada».

III

Na vida da Festis tudo aconteceu de forma rápida e pouco acostumada e tenho muitas vezes pensado que se Kafka tivesse escrito esta história Feltis provavelmente jamais teria regressado. O autor deste relato, usando de toda a verdade que se lhe assiste, permite-o, mas o seu regresso não é menos cruel e infausto.
De facto, mal Feltis recompôs-se do acidente que vimos relatando e passou-se a chamar Costa-Quebrada sobreveio-nos mais uma grande desventura a qual foi a causa da perdição da felina criatura. E porque escrever com todos os pormenores o lamentável fim que sobreveio a Feltis, a mim muita mágoa e ao leitor mais fastio que contentamento causaria, não tratarei mais que com a maior brevidade possível o estritamente necessário para a verdadeira continuação desta pouca costumada história.
Indo nós na passagem onde quebrei o fio a este meu trabalho, havendo Feltis curado da pancada que tenho dito e contado, foi-lhe servido meter-se em grandes voluntarezas e cabrices das quais resultaram uma prenhes indesejada e começou a cumprir-se os prognósticos e juízo duma vizinha estrangeira que tinha ido dar fé quando ouviu novidade do regresso da Feltis.
Carregando fortemente nos rrs, por não dominar ainda nem o português ou o crioulo, vaticinou com sua boca fede: «gata vai ficar com costa torta. Vocês toma muito cuidado para não emprenhar porque fica com filhas dentro do estômago».
Tendo chegado a altura da parição, e já olvidados daquela infame estrangeira, preparámos um caixotinho de papelão para Feltis ter suas crias. Mas ela não pariu. Nem podia parir, como mais a frente se verá.
O médico pôs no bilhete de óbito congestão pulmonar. Mas ele é que matou o nosso gato. M. praguejou depois de ler o certificado: «congestão pulmonar é cadeira da sua mãe». Eu para consolar: «Aquela estrangeira já tinha dito». «Aquela boca fede» disse M. colhendo as rédeas ao assunto.

IV

Poderá eventualmente interessar ao leitor saber que desde o fim do capítulo anterior decorreram 15 meses sem que o autor mexesse nesta história. Até que certa tarde, estando numa paragem de autocarros no Sucupira, deu as boas tardes a uma jornalista da televisão e enquanto esperávamos o autocarro que nunca mais vinha a nossa conversa descambou em canina e felina bicharada.
Ela contou-me que esse mesmo veterinário, a quem no início do primeiro capitulo, como referi, pedimos ajuda e favor, tinha-lhe matado o seu cãozinho de estimação, de nome Lili, como, muitos anos depois, na Casinha Velha, onde fui jantar com o Nuno Rebocho, o Apolinário das Neves e Ricardo Bardalo, me havia de revelar, quando lhe disse que tinha posto seu cãozinho de estimação num conto que escrevi imediatamente depois do nosso encontro em Sucupira. Olha filhota, este aqui que é sr. António, que pôs o teu cãozinho na história, diz boa noite. Por nada deste mundo a filha quis cumprimentar-me, porque teimava que não tinha nem nunca tivera cão de nome Lili, “inda mais com manchinhas no peito”, disse afastando-se de mim bastante agastada. Mas filha é verdade; tiveste um cão chamado Lili, só que já não te lembras porque eras muito pequena na altura, interveio a mãe.
Aqui poderá ser mais útil ao leitor que eu abra um parêntese e esclareça alguns pontos para o bom entendimento do que venho relatando. A jornalista da televisão desta história é a dona Alicia Brito, actual assessora da Ministra das Finanças; a Casinha Velha, para usar de uma vez por todas palavras fatais é a instituição da noite. “Barriga de atum, tchitcharro e bica, sempre grelhadas, com batata cozida e saladinha, ementa a mesma sempre” - nestes termos e nesta ordem de pescado registou um jornalista português no seu roteiro de viajem Quebra - Canela (aventuras e desventuras de um portuga nas ilhas do Cabo Verde) as maravilhosas iguarias da cozinha do velho Alves. O dito portuga confidenciou-me certa vez que se podia até dizer, sem faltar muito à verdade, que ele vinha de Portugal, quase e exclusivamente (de metod, diria Bana) para se deliciar e empanturrar com as quadradas barrigas de atum que o Alves corta generosamente, escoltadas inevitavelmente pelas saborosas batatas cozidas que são um hino de louvor aos deuses da culinária. E quem é, já agora, este simpático velho Alves que inadvertidamente entrou por esta história adentro sem pedir licença? Se o desocupado e distraído leitor me tivesse feito o favor de ler as mil e umas aventuras de Nuno Rebocho por vales, achadas matos e ribeiras de Cabo Verde, não estaria agora a importunar-me. Mas por minha boa sorte, ou mal dos meus pecados, vai um retrato, extraído da obra do referido autor, que impressionado com o destino de mais um europeu que troca o seu continente pela África, lhe dedica uma crónica inteira no seu livro. O velho Alves não é Quincas Borba, o inventor de uma filosofia, sintetizada na máxima Ao vencedor a batatas. Mas tem uma filosofia de vida: descansa de dia, trabalha à noite. “Enriquecer para quê? Trabalho o que é necessário para viver e não ter chatices”.
Já chega de apresentações e regressemos a correr à felina história, onde tínhamo-la deixado, que era no ponto onde Alicia Brito, frente à paragem de autocarros no Sucupira deu início à sua história, nestes termos: “Fui consultar o meu cão. Aquele médico receitou-me 50 comprimidos e disse: assim que chegar a casa dá o primeiro comprimido numa colherzinha de chá. Se continuar com os mesmos sintomas ou não melhorar a senhora dá ao cão mais uma. Àh sr. António, ao outro dia fui à sua clínica e ele teve ainda o descaramento de perguntar-me como vai o nosso cão. Também respondi-lhe: «você toma os seus 49 comprimidos e receita-os ao seu gato para ele morrer também». Tinha sido como se diz agora tiro e queda. Ela contou-me que chegado à casa foi buscar imediatamente a colher de chá, abriu a boca ao cão, enfiou o remédio nas suas goelas e ficou correndo mão na sua cabeça enquanto dizia: cãozinho vai ficar melhorzinha, cãozinho vai ficar boa já. Mas então o cão caiu na mais profunda prostração vindo a morrer ainda antes de desinfectar a colher na qual dei ao cão aquele maldito remédio. «E você sabe, foi tudo por causa dumas manchinhas que saíram a Lili na peito», disse ela mais em modo de tchocota do que a sério.

V

Só no dia dos meus últimos passos sobre a terra apagar-se-me-á da memória a última noite em que vi a Feltis. Eu ia sair de casa apressadamente, quando vi na varanda Feltis e parei. Ela sentada nas patas traseiras, a cabeça erguida em direcção ao céu, mirava a imensidão do universo. Sentei-me ao pé dela, fi-la festinhas nas costas e olhei também para o império celeste em silêncio. Pensei: para onde estará a olhar este gato? Em que estará a pensar? Quererá encher-se com todas as imagens e rumores da Terra para quando estiver morta? Que triste destino ter este animal nascido gato! Eu também poderia ter nascido gato, barata, burro ou o que quer que fosse sem ter podido modificar a minha dita. Porém brevemente ela deixará de ser gato, de ser o que quer que seja, de ser simplesmente, quando a morte a libertar do triste costume de ser animal e do peso do universo.
Com efeito, no dia seguinte, o estado da Feltis tinha piorado de tal maneira que ela desistiu do ofício de parir indo procurar alívio para seu debilitado corpo numas terras molhadas do nosso pequeno jardim, onde ficou até ser levada de urgência para consultório e recebido o dito tratamento do qual resultaria a intempestiva e lastimosa morte como ficou dito e escrito no começo desta história.
Muitas vezes, à hora em que das montanhas descem as primeiras sombras e o céu enche-se de estrelas, tenho-me sentado diante da porta a olhar para Feltis como se ela estivesse ali comigo a contemplar a vastidão infinita do universo. Então invariavelmente dou comigo a pensar na trágica pequenez humana perante um universo que se rege por leis mais perenes do que as nossas e que nada tem de antropomórfico, como no nosso egocentrismo somos propícios a pensar. Mas então, questiono-me, qual é a realidade de tudo isto? Afinal onde é que as coisas continuam e como continuam se é que continuam? Será o universo finito ou encontra-se em expansão eterna? E como eram as condições na altura do Big Bang, a super explosão inicial que deu origem a um universo em expansão, hipótese em que se baseia quase toda a cosmologia moderna. E como era isso milésimos de segundos antes da explosão, antes do nada não pode haver nada. Existiria um minúsculo universo, despido de toda a matéria, a qual, de súbito, se criou a partir do nada. «Isso e apenas contemporizar. Se quisermos prosseguir a questão corajosamente, teremos, evidentemente, de perguntar de onde veio Deus. E, se concluirmos que isso não tem resposta, porque não saltar um passo e concluir que a origem do universo é uma pergunta sem resposta? Ou, se dissermos que Deus existiu sempre, porque não saltar um passo e concluir que o universo existiu sempre?» Estas reflexões, como o benévolo leitor terá já constatado, não são minhas. No que eu piamente acredito é que deverá existir qualquer coisa como uma memória universal onde está armazenado tudo o que existe, tudo o que existiu e tudo o que virá existir.
Dela fazem parte tanto a Retirada dos Cem Mil, a guerra de Tróia como as feltinas façanhas que já em vida da extinta andavam nas bocas do mundo, levando a palmo em matéria de grandeza e temeridade as maiores aventuras cometidas em toda a redondeza da terra, as acima referidas incluídas.
Sei que muitos preferem o célebre e na altura muito relatado Carnaval que ela mais um grupo de gatos foram passar na Achadinha que saldaram em doze mortos, trinta prisões, três patas e quatro pernas partidas, tendo sido Feltis atingida em cheio na pata direita por um tiro de arcabuz quando encima dum telhado dava cobertura à retirada duma colega e teve de andar um mês de muleta.
Para mim, a história do telefone, quer no que representa em termos de actualidade como de profunda psicologia é aquela que mais me alegra o ânimo, não obstante existirem opiniões divergentes quanto a veracidade deste relato. Seja como for, hoje, 3 de Janeiro de 1997, vislumbro-a assim: um dia M. estava a telefonar.
Conta a história que Feltis, já farta daquele conversar sem fim, dirigiu-se felinamente à sala de jantar atravessando o corredor e num rápido e brusco ataque arrebatou à M. o auscultador do ouvido pondo desta arte termo a uma conversa que já se arrastava por mais de uma hora. Felizmente para o gato, infelizmente para M., Feltis nasceu dotado de umas garras compridas e afiadas. Fora dos propósitos e intenções da Feltis, foram essas garras espetar na orelha da M. causando-lhe graves problemas e não menores dissabores sobretudo na hora de deitar. Para debilitar essa chatice ela durante semanas a fio só deitava do lado do ouvido pronto. Muito tempo depois do inaudito incidente M. ainda só telefonava a portas fechadas e só depois de munido de um duro varapau ter vasculhado todos os cantos da sala. Vale.
Por António Moneiro

terça-feira, 5 de junho de 2007

C. como Cutchó,

aliás como

Catchor di Ultra

Quem passa hoje pelos lados da Farmácia Ultramar deparar-se-á com um homem já velho e paralítico perdido no barulho e movimento da rua Sá da Bandeira esperando que um cristão menos apressado lhe dê uma esmola.
Sempre que passo por essas bandas sem querer vem-me à memória o nosso primeiro encontro de há muitos, muitos anos. Devia eu ter meus 11 ou 12 anos quando um dia minha mãe chamou-me e disse: T, vai para os lados do mercado e traz camião pois já está na hora de transportar as coisas. «M., forte pressa também, espera o sol armar esfriar mais um bocadinho», disse. Mas o problema é que eu não tinha bock de ir pois íamos mudar de casa, deixar para sempre a rua Cândido dos Reis, companheiros de infância, jogos de bola, doces di nha Piquinoti, puxadas di nha Laia, etc. Quando não deu mais para adiar, com a M. já ameaçando procurar vara de marmelo, lá apanhei a minha bola de meia e fui dando chutinhos e tchintchins pelos caminhos, becos e passeios da Praia até que finalmente cheguei à zona do mercado.
Deslumbrado pelo som e a animalesca fúria daquele derradeiro tráfico mercantil do dia, esqueci-me até do meu mandado. Só dei conta de mim quando senti que alguém me tocava de maneira insistente e desagradável. Virei-me para ver o que era, mas o homem, como advinhando as minhas intensões, perguntou logo: «Ê bó menino lá, o quê que tu joves?». Primeiro quiz correr, aterrorizado pela descomunal figura que tinha à minha frente, um monstro com voz de boi e pernas moda tesoira como mais tarde observaria treffend minha irmã. Mas depois fechei coragem e respondi: «Minha mãe mandou alugar carro.»
«Carro para quê?». Eu: carro para transportar movilhas. Antes de poder escapulir para a travessa onde ficavam ubicadas as lojas do senhor Luciano e do senhor Salvador, C. (também conhecido por Catchor di Ultra) deu-me uma semelhante puxadura no braço de cima para baixo, dizendo «mostra casa da tua mãe». Protestei, teimei, argumentei – nada me valeu. À segunda puxadura, que quase me ia arrancando o meu bracinho esquerdo, disse já sem voz «casa fica lá na esquina». Fomos. Eu andava depressa pois tinha medo de C. que me pelava e num ápice tinhamos passado a rua República, dobrado a Pracinha da Escola Grande e alcançado a Rua Cândido dos Reis onde morávamos.
Era esse mundo delimitado pela rua Serpa Pinto, Rua do Hospital, Pracinha e Casa Carlos que eu só abandonava aos domingos para ir à Igreja e Praça Grande e regressava com o meu irmão pegadinho na mão quando o relógio da Câmara batia as sete horas da noite que eu ia deixar para sempre. Mais tarde haveria de deixar outras ruas, outras praças, ate mesmo a minha ilha, mas essencialmente e no fundo não é demais dizer que nunca me ausentei dela.
Quando chegámos, ele afrouxou a sua boina para dar as boas horas. Minha mãe mostrou-se surpreendida e repreendeu me levantando a voz: « seu nocentão de não sei que, mandei-te buscar Cutchó ou camião ?». «Câ foi ele gó...» mais não saiu porque M. deu-me uma sinhora caqueirada dizendo «vai para dentro, menino sem servintia para nada».
Derivado deste incidente, seria a negociação do preço a única parte desta memorável história que eu não haveria de presenciar directamente, tendo-a assim mesmo seguido do fundo do meu quarto sem perder um único permenor enquanto fingia escutar relato de futebol, gritando golos do Benfica para enganar minha mãe. Eram 40... 35; 35...30; 30...25; 25...20 etc.Cutchó subindo M. descendo.Neste vaivem de preços Cutchó imbirrou e disse com sua vozona «então sinhora manda chamar juvita».
Depois reinou longo silêncio: baixei o relato para ver se ouvia algo quando M. entrou no meu quarto, deu-me uma pescoçada, esticou o dedo indicador e disse-me com voz abafada «vai atrás dele». Tinham chegado finalmente a um acordo.Grande como uma enorme sombra Cutchó desfilava pela casa inventariando tudo, ora defronte do armário coçando a cabeça, ora mirando pensativamente um pesado divã, ou esticando nervosamente a barba acompanhado de porras e merdas. Por fim parou, virou-se para M. com plano já feito. «Emborcamos a mesa grande, metemos deitado nela os armários, as cadeiras, aquela divã lá, as duas camonas e alguns bacios. Isto para a primeira volta». Enquanto falava tinha feito uma boa ordidja de folha de bananeira seca; depois ajoelhou-se, não sei quantos vizinhos meteram mão na obra nem quando tempo decorreu até lhe plantármos a enorme mesa encima da cabeça. M. comandava do alto da escadaria a filigrana operação pois devido ao peso que transportava e à sua proverbial casmurrice Cutchó ficava às vezes encalhado num dos cantos da comprida e astuta escadaria sem perspectiva nem visão e era preciso que minha mãe lhe indicasse quase todas as manobras que era mister fazer: nhu desanda, nhu baxa, nhu birra cabeça pa squerda, nhu arma froxa. Finalmente ultrapassámos a ombreira da porta, para alívio da vizinhança e pesar da criançada que durante pelo menos duas horas teve Cutcho a la carte, como dizem os franceses. Eram catchor di ultra, catchor di ultra, mania e Cutcho de ensurdecer os ouvidos. Cutcho verberava catchor di ultra e c. di nhos mai e outras obscenidades que me abstenho de escrever aqui, enquanto ameaçava: já sei quem és, quando te pegar tiro te a carepa. Mas com isso apenas feria o pudor dos adultos. Um ou outro desabafava: deixa estar que Cutcho e malcriado. Por fim M. chamou-me à parte recomendando: «toma muita atenção e não te insodes no caminho».
Fomos a boa velocidade. Tinhámos já ultrapassado metade do platô quando vi Cutchó estugar o passo e mudar da rota. «Ê nhó, parece que se equivocou no caminho». Sem me prestar muita atenção ele retomou seu reportório azedo de palavrões enquanto desandava o caminho já andado.
«Não aturo merda de crim-crim encima da minha cabeça», foi a primeira coisa que ele disse quando entrou em casa. Eram os bacios de esmalte que chocalhavam a cabeça de Cutcho. Depois de bem preparadas com papel de jornal, C. confirmou com a cabeça, bebeu um copo de água gelada, cuspio no nosso tapete novo e largamos: eu à frente ele a trás instigando sempre «Anda mais faxi, ou tua mãe não te da comida em casa?».
Quarto de hora após a nossa segunda saída, com a língua de fora como cão cansado, as pernas pesadonas e pingando como chuveiro, aconteceu que só no último segundo e já sem tempo para avisar, vi um cavalão de pedra estancada no meio da estrada e para nossa desgraça e infelicidade foi Cutchó servido dar uma somelhante topada que sacudio todo quanto levava encima da cabeça. «Stapor de merda, se te pego, mato-te» gritou com voz de fera ferida.
Para meu espanto essa ameaça de morte não me assustou muito, pois reparara que com o peso que C. levava em cima na cabeça a única coisa que ele podia fazer era na verdade caminhar e virar, nem ver para o chão podia. A única ameaça só podia vir da sua boca através dos palavrões que sabia enfiar com singular mestria. Hoje arrependo-me e não me perdoo de não tê-los então recolhido. Cutcho mandou-me descrever-lhe a topada. Menti dizendo que não era muito runha; mandou-me então tirar a pele, pôr terra e urinar por cima. Quanto ao urinar tivémos que deixar para depois porque por mais que espremesse não saía nada. Reparei que ele estava perdendo a paciência pelo que, tomando ares de criança esclarecida, disse secamente: «suor também serve, é como urina». «Vai enganar macaco» bradou, e metemo-nos no nosso caminho. Estive até na tentação de agradecer a Nosso Senhor Jesus Cristo pelo vil acidente pois permitiu-me não só recuperar o alento perdido como até deu tempo para chupar uma drops que eu tinha no bolso.
O resto da caminhada decorreu na mais tranquila harmonia, só de vez em quando conturbada por um ou outro transeunte que passando por nós, metia a mão entre a boca e o nariz imitando um megafone, gritava: «Catchor di Ultra, Catchor di Ultra» ao que C. impavidamente respondia «Catchor di Ultra é c... di nhôs mai».
O sol já quase não queimava e uma brisa leve soprava do outro lado da cidade quando parei, mirei C. no seu rosto e disse pausadamente «É aqui que é a casa». A vizinhança ajudou-nos a descarregar, tranquei a porta bem trancada e puzemos rosto para o Platô outra vez.
Ali pelos lados da alfândega C. parou, acendeu uma beata e disse «rapazinho, vou tomar uma cadória naquele bar ali. Se quizeres vai tomar banho na mar». «Água agora está muito fria» contestei, seguindo à letra as recomendações da M. para não perder C. de vista. «Então vem nha tráz», disse e entramos no botequim.
Era um desses botequins como os havia em todos os subúrbios da capital: um balcãozinho, umas mesas velhas escoltadas por uns banquinhos, luz sombria. Sentado ao fundo, cercado por um grupo de pessoas, reconheci logo Fumaça que às vezes ia pedir bocado de comida na nossa casa e nós metiámos com ele dizendo: «Fumaça dja rouba» ao que ele arrastando a língua com seu ar brejeiro respondia: «Fumaça ca ta rrrouba, Fumaça ta conserrrva».
Cutchó instalou-se no balcão. Ao lado dumas garrafonas de vidro repletas de drops havia um prato com moreias fritas.C. apanhou uma posta e disse «toma bu pulba». Dei uma dentada indecisa, mastiguei. A minha língua ardeu como brasa, o ar faltou-me nos pulmões, cuspi, pedi água.A moreia tinha malagueta que podia carregar um navio. Para disfarçar o meu mal-estar perdi-me no fundo do bar, enquanto percorria com os olhos as ilustrações coladas nas paredes, quando não sei como pisei um cão que estava deitado tranquilamente no seu lugar sem mexer com ninguém. Deu um gritinho acompanhado de um movimento rápido em direcção à minha canelinha onde cravou-me uma dentada. Quando me recompuz do susto e vi um fiozinho de sangue a escorrer para baixo desatei a gritar: «ah minha mãe, nta morri, nta morri». Um homem com ar de pessoa do interior limpou-me o sangue com a palma da mão dizendo-me: «rapazinho tomar sempre cautelas com cão simulado. Eles mordem runho». Depois, para me consolar, perguntou meio curioso, meio desinteressado: «és filho de quem?». «Sou neto di nho Manito», respondi secamente. «Neto nho Manito Rocha, conheci-te ainda pequinote. Forti criaste faxi!»
Sorrateiramente escapei-me daquele homem pois além de cheirar fortemente a álcool vi que tinha uma enorme e corteira faca enterrada na cintura. Fui sentar-me na ponta de um banco onde Fumaça contava uma tchacota a qual causava enorme contentamento a quantos o ouviam. Fingi interesse, acomodei-me melhor. Não ouvi o princípio desta prática mas depreendi que ele e um outro descarregavam uma viatura estacianada algures em Ponta-Belém. «Bom», prosseguiu Fumaça: «nbota saco na tchom, ndescarrrega, nu descarrrega carro ti quanto vi na cabine uma paca de dinheiro ta spretam dentro dum bolsa».
Fumaça contava a história com seu ar desconfiado de sempre, virando a cara ora para o dono da loja, ora para a rua, ora para o teto. Arrastando fortemente o r, continuou: «eu Fumaça deitei ainda alguns sacos à toa que até que o falecido S. disse: ‘oh moz toma cuidado para saco não me apanhar’. Vi para esquerda, vi para direita, marinhei para dentro da cabine, meti o dinheiro na boiço cadeira, disse a S. que ia botar uma urina baixo de rocha e soti rosto para Achadinha. Eu ia depressa, os meninos metiam comigo eu nem ligava até que meti no botequim, aquele junto do chafariz. Pedi um grrrogu, paguei com uma notona porque não tinha dinheiro mais miúdo. Nhu L. mirou-me desconfiado na rosto com seus olhos grandes cima boneca, nem tomei troco e meti rosto para Lém-Ferreira onde tinha uma membra.
Quando estava encima da ponte, três ou quatro cães cercaram-me, atirei-lhes umas pedradas que melhor fôra não as tivesse arremessado pois mais ainda se embraveceram; então eu, Fumaça, resolvi por rosto para aeroporto. No aeroporto que era a primeira vez que eu ia porque, durante toda a minha vida de cristão, o mais longe que eu embarquei, se é que àquilo podemos considerar viagem, foi até orela mar, na praia da Gambôa, para fazer biscaitinhos ou carregar alguma atum, mas sempre longe daquelas ondonas que quebram uma pessoa na pé.
No aeroporto, como estava contando a vóz, havia um grande movimento de gente e coisas que eu próprio pensei que ficava aqui milionário num dia porque nunca tinha visto tantas maletas juntas de uma só vez. E estava eu Fumaça a contemplar esse movimento com minha mão na queichada quando dei com os olhos em dois cabalões de polícia e então eu fui dizendo com licença, com licença que eu vai embarcar até conseguir sair daquele lugar cheio de maleta por todos os sítios. Depois espretei na vidro e vi uma casona sem portas que tinha dentro dela dois aviões com suas ventoinhas paradas. Entrei numa delas e disse ‘Fumaça descansa um pouco destas raboliços’. Não sei quanto tempo assim dormi dentro daquele avião até que um barulho como mosca na tia de aranha me acordou. Eu Fumaça não escondi mais. Não sei porque obra de encantamento ou geomância aquele cavalão de avião estava riba de céu voando com suas ventoinhas tamanho roncando cima mosca que caíu na tia de aranha. Então meti rosto para baixo e vi um mar de água que a barriga me desandou e pedi a Deus Nosso Senhor Jesus Cristo para me por são de saúde na terra que eu nunca mais montava na avião. Foi lá que o avião começou a descer para baixo a toda a velocidade.Eu Fumaça gritei ‘olha avião ta cai’, mas nhó não caíu e foi correr riba duma estradona, fez um barrulhão que pensei que ela ia arrebentar mas, louvado seja Deus, não rebentou e foi estacar moda cavalo. Quando desci das escadinhas diguidjideiras e estreitas daquela avião e pus os pés em terra firme, perguntei a eles na qui terra ao que tinhámos chegado. «É São Vicente», respondeu uma sinhora bonita de cabelo fino que na mei da viagem tinha vindo com uns copinhos na bandeija perguntar-me se eu queria água ou sumo de laranja. Para evitar chatice de pagamento com notas grandes, arreganhei os dentes e disse: «Muitos obrigados, Fumaça estar fartos».
«Cheira bem», pensei quando assentei os pés no chão e aspirei pela primeira vez aquele ar puro de S.Vicente. Depois fomos em fila indiana e entramos numa casa bonita cheia de flores e um homem com sua pistolona perguntou: «Fumaça o que tens a declarar?». «Como onda espalhada a fama das minhas aventuras. Até aqui onde nunca botei os pés já me conhecem. Maldita hora em que entrei neste avião», pensei antes de responder: «Fumaça declara que nada tens a declarar». «E na boiço de cadeira, não está também nada?». Foi o fim da minha aventura na boca daquela ilha. Aqueles malvados tomaram-me a minha paca de dinheiro e trancaram-me na prisão.
Eu Fumaça não sei quanto tempo passei naquela prisão na meio de umas gentes falando um crioulo mariado que eu na princípio não percebia nenhuma ponta mas que depois aprendi e achei que é muito mais sabe e doce do que o nosso badio duro que só dá para fazer dizer disparates e covar pessoas. Quando eu passava na nha caminho com minha pé cima pastel e calças roladas nas canelas perguntavam: «À Fumaça amoda bô stá. Nada quê duê?». E eu «Fumaça está bem. Nada quê duê». Eu agora Fumaça sou esperto, dei-me sempre bem com autoridades de prison fazia inclusivé de vez em quando uma pé de galice que quando um dia pedi ao senhor R. autorização para cultivar um pedacinho de terra ele respondeu logo: «concerteza, concerteza, Baucelino de Pina», porque de facto assim fui registado e bautizado mas na Praia logo no primeiro dia puseram-me alcunha Fumaça nome pelo qual andam espalhadas por todo o Cabo Verde as minhas mais memoráveis aventuras e nome pelo qual elas entrarão na História se aquele rapazinho que aqui está um dia der em escritor e resolver escrever a minha história para deleite e entretinimento das futuras gerações.
Mas como contava, a alcunha Fumaça foi-me posta logo no primeiro dia porque andava sempre russo derivado dos sacos de cimento que eu carregava e dos poucos banhos que eu tomava. Em todo o caso o senhor R. autorizou e eu meti abóbora, mandioca, milho, verduras etc. As ortaliças estavam a crecer lindamente, muito visoças e eu estava metido na naquela minha lavoura, regando, matando insectos, compondo canteiros, até que um dia, um homem com a sua carapuça na cabeça fumando cachimbo veio estragar meus planos. Mandou preparar comício e com o seu altifalante na boca disse que a liberdade tinha chegado à nossa terra.
Na sua conversa referiu-se aos 500 anos de opressão e domínio estrangeiro e aos camaradas que perderam suas vidas pabia nossa liberdade. Despois virou para nós, disse ‘nhose ê a partir de agora homs livres, cidadãos de noss pátria africana’. Ele deu ainda Viva ao PAIGC, força, luz e guia do nosso povo na Guiné e em Cabo Verde, Viva a Unidade Guiné-Cabo Verde, honra e glória à memória de Amilcar Cabral, apanhou o seu cachimbo e foi-se embora. Eu disse para mim «eu Fumaça aguento mais alguns dias na prisão, sem minhas bobras e mandioca é que não vou».
Corri atrás dele, disse-lhe meu nome é Fumaça, você com que stória de conversa de gaita está a vir com ela. Ele respondeu que era política e que tinha combatido na mata 11 anos para nossa liberdade. Eu Fumaça respondi-lhe: Cabo Verde não tem mata, desde que nasci não vi mata em nenhum cau. Aquele senhor riu, disse para poder chamar-lhe camarada porque sinhor acabou na nossa terra e agora éramos todos iguais.
Ele deu-me até um cigarro que eu fumei com muita agrado e proveito. Mocinhos, fiz uma bola com os fumos de cigarro, espiei para o céu e disse para comigo: minha gente, cada hora eles saem com um conto novo, agora é camarada. Aquele homem olhou para mim, deixou-me tirar mais um fumo de cigarro e continuou: «camarada Fumaça, o camarada tem muita razão com o que diz, mas na República Irmã da Guiné-Bissau tem muita mata. Ali é que lutámos contra o colonialismo português e contra todas as formas de opressão porque aqui na nossa terra as condições não o permitiam».
Vi que aquele senhor estava a baralhar-me a cabeça apanhei a minha enxada boca larga e disse: «senhor, aliás camarada como agora a gente diz, eu quero ficar só té aquelas hortaliças lá derem para eu ir, porque eu Fumaça dessas coisas de políticas, de condições da nossa terra, de opressão (Fumaça dizia ofrissão), de força, luz e guia, de dois corpos um coração não entendo nada. É melhor o senhor ir o seu caminho e deixar-me em paz». Então, como estou a contar vocês, eu subi na minha stribo e disse-lhe: «o senhor acabou de falar muito sabe. Eu Fumaça não entendo de política e nunca tinha ouvido falar de política em toda minha vida mas eu também digo ao senhor uma coisa que não sabe e que eu ouvi dum grande homem chamado Nhu Nacho, lá minha ilha. Aquele Nhu Nacho disse que ali havia de vir um dia um partido que tira vocês do poder e traz democracia e liberdade na nossa terra. Agora o senhor larga-me da mão e vai seu caminho».
Falei tim xinti, mas qual história. Eles meteram-me numa avião que foi poisar num lugar seco raganhado que eles chamam Sal. Quando desci do avião foram sentar-me num banco e disseram: «o camarada espera lá sim uma hora para tomar avião para Praia».
Eu Fumaça nem sentei na cadeira direito quando senti na nariz cheiro duns frangos assados que vinham da cozinha; só naquela hora é que lembrei que não tinha nada no estômago. Chamei uma senhora com avental branco e disse: «senhora trazer-me um frango assada com batatas fritas na lado». Ê nhos, comi aquele frango duma pancada, depois veio aquela mesma senhora de vental com um papel na mão, joveu-me no rosto e disse «sua conta se faz favor». Eu não tinha nem meio tostão na boiço, olhei para a pista vi umas avionzonas com suas asas esticadas brã, sem hora de levantar voo, respondi: «nha spera li, nós somos dez camaradas da Praia, senhora traz mais dez franguinhas que eles vem goci e pagam sem provelemas». Mocinhos, aquela mulher creio que era nocenti propi, porque ela trouxe mé dez cabalões de galinha todas com suas batatas na lado e salada que eu comi devagar até que vi um avião torrando suas ventoinhas; olhei para esquerda, olhei para direita, não vi ninguém e quando me preparava para dar uma somelhante carreira para entrar no avião uma mulher que estava sentada no fundo da sala com uma livrona na mão e que eu Fumaça nem tinha reparado, levantou os óculos e gritou com sua vozinha de tchota pilingra: «meus senhores, meus senhores, este larápio, este crápula, este energúmeno, de calças rasgadas na cadeira, com os pés moda pastel di nha Siarinha é Fumaça cujas escabrosas aventuras, melhor dito desventuras, estou a ler neste livro escritas por um tal António Monteiro, natural de S. Nicolau Tolentino».
Vi aquela feiticeirona na rosto, aquela bruxa sem dentes na boca com dedos cima anzol e disse: «a senhora toma cuidado e não choma Fumaça de larápio. Fumaça não conhece nenhum António Monteiro natural de S.Nicolau Tolentino só se for aquele rapazinho neto nhu Manito Rocha que encontrei uma vez com Cutchó numa botequim lá Praia e que cão mordeu no pé porque era nocenti e que agora esta armado em escritor. Sua mentirosa, sua não presta, sua ralaxada, sai da minha frente. Naquela ilha que chamam São Vicente foi a mesma coisa, um senhor que nunca vi na minha vida e que também nunca me viu interpelou-me como se me conhecesse há mais de 20 anos: «Fumaça o que tens a declarar». Merda daquele rapazinho que pôs meu nome na livro. Agora esta stapora dizer que leu meu nome na livro. Coitado de eu Fumaça. Quem já viu Fumaça falar português daquela maneira como está neste livro que vocês próprios estão a ler neste momento? Eu Fumaça só fala crioulo. Crioulo fundo di São Lourenço dos Órgãos, onde nasci e cresci e cuidei das minhas alimárias até dia que terra deixou de dar e vim para Praia carregar sacos na porta mercado só para me porem nome de Fumaça e dizerem ‘Fumaça dja rouba’.
Neste divertido e principal ponto desta história ouvi uma vozona dizer: «rapazinho, labanta no bai».
Foi então que lembrei-me da minha perna e pus a manquejar. A breve trecho C. parou e perguntou «ê bó, o que tens na pé». «Foi cão que mordeu», respondi.


Por António Monteiro